quarta-feira, 23 de julho de 2014

Barbeiros, I (ou «os perigos de andar de boca aberta») - Miguéis

[texto que teve que ser lido para fins «oficiais...]

[espaçadas eram as idas ao Barbeiro de C., então, D. ou N., pois eram «cortes quase de máquina Zero»; dois eram os barbeiros:
- o sr Manuel, magro ou seco, sóbria e polida figura,  na Calçada da Bica Grande - repleto aos sábados de manhã - que teve carreira muito, muito longa...;
- o sr Fernando, na Calçada Salvador Correia de Sá - onde D. nasceu... - rubicunda e sarcástica figura, sem piedade pelas crianças... (outras histórias...) 

REcortes de Recorte de Miguéis:
      Entrámos numa mercearia, e ali fiquei muito tempo, especado entre as sacas de batatas e de arroz, a ouvir falar de doenças e mortes, de carestia da vida, de política e de outras atualidades, então como hoje, palpitantes: desconsolado e quase choroso, porque ninguém me deu uma bolacha Maria nem um pirolito.
   Havia algum tempo que os ares andavam turvos: falava-se de República e de Revolução. Diziam-se cobras e lagartos do Rei. [...]  Um novo pormenor, para mim de incalculáveis repercussões, vinha acrescentar-se agora ao Regicídio: da explicável confusão que se seguira ao atentado, algumas pessoas tinham saído mortas e feridas. Acontece que o barbeiro da Graça, súbdito leal de Suas Majestades, não quisera perder o ensejo de saudar à chegada a Real Família. No Terreiro do Paço, à passagem do magro e veloz cortejo, ele tinha aberto a boca para bradar «Viva El-Rei!» quando uma bala perdida, entrando-lhe pelo céu da mesma, lhe furou a base do crânio para sair pelo olho direito. Foi uma bala prodigiosamente acrobática, disso não resta dúvida nenhuma. Ignorante da Medicina Legal, ao ouvir estes relatos macabros e sugestivos,limitei-me a pensar com horror nos perigos de andar de boca aberta a dar «vivas», ainda que fosse à República, como era o meu costume.
      Saí da mercearia acabrunhado, pela mão de minha mãe. Tinha confiado os meus virgens caracóis às mãos daquele barbeiro «talassa», e sentia-me agora um bocado órfão.


José Rodrigues. Miguéis, «Pouca Sorte com Barbeiros», in Léah e Outras Histórias, Lisboa, Estampa, 1987 [1.ª edição de 1958], pp. 104 e 105 (adaptado)